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Reino das Gargantas Felizes

  • Foto do escritor: António Vilhena
    António Vilhena
  • 19 de mar.
  • 4 min de leitura



A origem do nome era uma lenda que se repetia e todos gostavam: da lenda e do nome.

A altura das montanhas era tal que as aves para atingir seu cume faziam uma parada nas ásperas paredes intermediárias onde a existência de grutas e salões transformavam o imaginário de quem delas ouvia falar de tal maneira que a lenda passou a ser ouvida com os desejos de transformá-la em realidade.

Amontoados de pessoas, idades indefinidas, em suas poucas horas de descanso se viam planejando certezas: lenda ou realidade?

O desconhecido sempre foi responsável por tentativas; erros acompanhavam essas ações. E, enquanto uns e outros falavam e se contradiziam, enquanto tentavam impor seus desejos e vontades, surge uma figura que, graças a sua aparição inesperada e a compleição física de impor respeito, fez a todos silenciar tornando-os em ávidos ouvintes como se figuras sem norte e rumo fossem. O movimento dos braços, feito tesouras ia abrindo espaços e quando todos se aperceberam uma roda havia sido feita e ouviu-se: “mas que gente sois vós? O que vos torna tão tortuosos no pensar e no agir? De que tendes medo? Por onde andam vossos desejos e vontades? Sois incrédulos? Desconfiados? Ouvi o que estáveis dizendo, senti vossos temores e por que vos conheço dir-vos-ei:  as grutas transformar-se-ão em rios e a água brotará e como véus cairá no colo de vossas virgens. Os salões serão vossos campos de onde tirareis sustento, para vós e para as gerações que virão.”

Então, o dia escureceu, o mago se foi e tudo aconteceu como as palavras ditaram.

Então, o som emitido pelas gargantas dos abençoados era tão virtuoso e belo que transformavam tudo ao redor, tudo em felicidade.

Era um reino de histórias e seus governantes delas se aproveitavam para se perpetuar afincando em seus súditos a imagem da felicidade que suas próprias gargantas garantiriam. Na verdade verdadeira, não era bem assim, mas alguns (sempre os há) acreditavam.

Um dos prazeres de sua alteza real eram os passeios pelas terras baixas ocasião em que conversava com os súditos deles ouvindo queixas e pleitos.

Mantinha ao largo tanto os servidores palacianos como os fidalgos e nobres pois dizia que o que seu povo tinha para lhe dizer, em primeira mão só a ele dizia respeito.

Era uma maneira burlesca de enganação fazendo acreditar que providências seriam tomadas de imediato o que efetivamente não acontecia já que antes teria que ser consultado o ‘Livro dos Comportamentos’.

Era um livro grande, pesado, de capa preta, onde o brasão do reino e o nome de seu senhor (o rei) sobressaiam a oiro. Suas páginas encabeçadas por desenhos de gosto duvidoso mantinham uma escrita própria de quem tudo quer saber e nada a revelar, não devendo haver transação ou atitude que nelas (as páginas) não fosse registrado. Em sussurros dizia-se que devido ao caráter vingativo de Máximus – o rei – faltas de anotações eram punidas com rigor tal que nem a rainha Gargoá nem Ascovide, seu Conselheiro Mor e de assento cativo, conseguiam diminuir.

A corte era pequena, mas servil. Ascovide mantinha forte influência quase sempre conseguindo que seus pareceres ultrapassassem o indesejável. Dono de terras em vários povoados, tanto angariava amigos como inimigos que, por muitas vezes transformava em calorosos afetos. Metódico, tinha nas tabernas uma fonte segura de informações que permitiam estabelecer prioridades em detrimento das necessidades mais prementes dos outros. Fazia de tudo para agradar a rainha Gargoá, por quem tinha uma afeição respeitosa, mas era para Flor Silvestre, a aia de confiança, que pavoneava seu andar.

Máximus não era bonacheirão e o rigor que se sentia em várias ações não o transformavam em um desinteressado. Mesmo que alguns povoados tivessem mais atenção de que outros, fazia questão de que os menos desenvolvidos crescessem. Como em outros reinos, nem sempre e nem tudo se resolvia com uma pena e tinta sendo por isso que discordâncias tinham que ser ultrapassadas com imposições. Máximus achava que valia a pena e Máximus assim o fazia.

Mesmo ainda não havendo herdeiros ao trono, havia preocupação com as crianças que tinham desde cedo obrigações: respeitar o rei e a rainha; respeitar os pais e os mais velhos; respeitar o tempo (era uma novidade para a época e lugar) já que tinham que: aprender as letras e os números; a se defender; a bem dizer pelas graças; a correr e cavalgar; a ser crianças.

Artesãos do ferro e da pedra era uma classe que a cada dia se fortalecia, o que causava inveja aos frequentadores da corte que pouco ou nada produzia e que gastava o tempo falando dos outros – não se sabe se bem ou mal – e num baixar de voz especulando quando seria anunciada a gravidez da Rainha Gargoá. Muitas apostas, mas sem vencedores.

Era a eles, os artesãos, que se deviam as azáfamas: a aproximação das chuvas e a data que Máximus havia estabelecido para o término de tanta obra, cuja razão só ele sabia, embora houvesse desconfianças.

Anualmente era realizada uma grande festa da qual todo o reino deveria participar. E, salvo raras exceções participava. Entre jogos e comilanças o desafio da “Garganta mais Sonora” era o mais esperado e desejado tendo seu ganhador ou ganhadora como recompensa um lindíssimo lenço bordado a oiro e o nome inscrito no pórtico de seu povoado. Se estrangeiro fosse além do lenço ganhava uma botelha de vinho doce, uma asa de pato e uma galinha temperada com as ervas que só o apanhador sabia o nome.

E tudo terminava numa grande contradança onde ‘gargantas felizes’ davam o tom.

 

 
 
 

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